Manhã do pior dia da semana, segunda-feira. Foi a primeira desde que o ano iniciou, desde que as férias acabaram, desde que minha mãe foi embora, desde que a rotina dele mudou. A primeira segunda para que pudéssemos ter noção de como seriam as próximas segundas do ano mal iniciado mas que já me parece tão longo. Acordamos cedo, bem cedo, para arrumar e colocar o lixo reciclável, acumulado por semanas, para fora. Depois a alegria da decisão: podemos dormir mais um pouco! O adolescente ainda em férias só seria visto na hora do almoço. E ninguém o teria de levar para a escola. Dormir mais um pouco. Juntinhos, como de costume. Algo do corpo que toque o corpo do outro, um braço, abraço, pés e pernas roçando, mãos dadas. São várias as formas de se estar junto na cama. Confesso que antes do idílio veio a dúvida: dormir mais um pouco, porque posso, porque tenho uma tarde e noite de trabalho pela frente, ou aproveitar essa hora e meia para sentar na sala, pequeno paraíso matinal, e ler? Ler o Seminário da carta roubada toda segunda pela manhã, antes da análise? Eu, sempre pensando em nova regra para descumprir. Escolhi subir e dormir mais um pouco, com ele, só pra aproveitar o enrosco dos corpos. 

Acordo, ele dorme um pouco mais. Perambulo por pequenas tarefas domésticas que me apetecem fazer naquele momento, sinto-me útil, responsável, adulta. Coisa rara. É quase hora de minha análise, o acordo, ele precisa sair do quarto. Análise feita, vou com ele para a realidade abissal da conta estourada. Comunista, diriam uns, de tão vermelha. Cogitamos um empréstimo. Pagamos contas atrasadas, eu fico encarregada do plano de saúde de nosso filho, conta atrasada. Cartão de crédito nas alturas, a próxima fatura vai comer meu salário! Nada disso turva a atmosfera doce e delicada daquela manhã. Almoçamos juntos, eu e ele, a comida deliciosa que minha mãe deixou na geladeira antes de viajar. Faço para mim um mexido de arroz, feijão e ovo e com isso sinto-me a rainha da economia, por não ter ido ao restaurante como havia me planejado antes de entender que a farta comida na geladeira ainda estava boa, prestando como se diz. No prato, soma-se o milho cozido. Ele escolhe pelo tutu, milho, abóbora e farofa. Faz frango desfiado, para ele e o filho. Não gosto. Preparamos o prato do adolescente que custa a acordar, carne e carne de frango, arroz e feijão. Ele gosta de almoçar longe dos pais, essa é a novidade dos 15 anos, façamos sua vontade.  

O resto do dia mal merece registro. Apenas seu fim. Ele chega frustrado da academia. Eu e o adolescente já havíamos saído de lá, nosso treino é bem mais rápido e menos sério que o dele. Pois bem, ele chega reclamando que não dá para ir na academia segunda à noite. É muito cheia. Aliás, meu filho não aguentou ficar lá por muito tempo naquela noite justamente por isso. Não gosta de lugares cheios e barulhentos, chega a lhe ser insuportável. Transtornos. Marido anuncia que será melhor para ele se for nas segundas pela manhã. Fico triste, não demonstro. Uma manhã esplendorosa como aquela não voltará a ocorrer. Digo esplendorosa porque amo a luminosidade da manhã, assim como sua atmosfera. Não queria repetir esta palavra, atmosfera, entretanto não encontrei sinônimo que me aprouvesse. Não digo nada, concordo com ele com meus gestos. Quero ser legal. Já demando tanto... Ele não quer ficar parado esperando pelos aparelhos, tampouco fazer os exercícios correndo porque tem alguém ali na cola querendo usar. Acho justo. Mas não gosto da ideia. Calo-me. 

Antes de dormir ele me abraça, como sempre. A moda agora é assistir reels e shorts, ficamos rindo com isso, essa bobagem. E ele diz que ficou pensando, que se for para a academia na segunda pela manhã a gente vai perder nosso momento de ficar juntos, nossa manhã descompromissada juntos. "Eu penso nesse", ele diz com jeito maroto de criança, olhar úmido de amor. Eu sorrio. E digo "eu também pensei nisso, mas viu que eu não falei nada?" Virei de bundinha, aconchegada nele, e dormi. 

 O ano é 2023. 

Lula presidente, foi eleito. Um alívio! Entretanto a atmosfera ainda é tensa. Menos, bem menos, é verdade. Foram quatro anos de descalabro, mas não se pode dizer com todas as letras que sairemos vencedores. O somos por hora, e por enquanto isto basta. 

A promessa que eu gostaria de fazer é a de que voltarei aqui periodicamente para algo escrever, períodos mais curtos que aqueles até aqui. Queria ser a menina que escreve uma crônica por dia. Ou por semana, estaria de bom tamanho. Mas o que percebo é que a idade chega não apenas para o corpo, que range, dói, engorda e fica flácido numa velocidade maior que minha tomada de consciência de que os corpos, ao envelhecerem, rangem, doem, engordam e ficam flácidos... Quando vi, a pouca argúcia que julgava possuir, de quem um dia poderia bem escrever, foi-se, escorreu por algum ralo invisível da vida. Não me tornei a pessoa que transforma uma ida ao supermercado em uma história interessante. E sim, a pessoa que gostaria de escrever mas não sabe sobre o que. 

Hoje é dia 18. Dia em que a fatura do cartão fecha. Mês em que resolvi cuidar de minha conta, de meu dinheiro, dinheiro da família. Faz parte das resoluções de ano novo. E o que descubro é que fevereiro será para pagar o cartão de crédito. Eu que trabalhe para preencher a conta no restante do mês. Que coisa. Ser adulto é muito chato.  

Estou sempre perdida no que deveria ler. Foco ainda não tenho, esqueço o que planejei. Enquanto leio um artigo da Isloany, de um livro que atravessou meu plano de leitura, pra variar, lembro-me de que deveria estar relendo A carta roubada.  

Dividida

 

Trouxe a vida dividida
E tudo o que vai se acabar
Aquilo que se foi
E o que não se sabe como será

Mudar a roupa é superfície
Que reflete não se sabe o que
Um nome que fique
Um jogo perdido 
E a pessoa não sabe mais
O que quer ser


Brazil

 Um paralelo entre Torto Arado, a mulher da casa abandonada e minha família paterna.

Desde uma casa abandonada no centro na cidade natal, em frente à praça, que está caindo aos pedaços por não ter chegado a um acordo no inventário, passando por empregadas pretas que dormiam no serviço e eram consideradas da família até caseiro da fazenda trocado de tempos e tempos para não crie vínculos com a terra.

Se não houve escravidão, existiu e existem salários muito baixos e regime de servidão.

Lembro de questionar algumas vezes, quando criança, algumas coisas que eu via e não entendia. Não entendia que fosse errado,mas não me parecia certo. Uma vez perguntei pq os caseiros viviam num casebre se a casa grande ficava vazia. Numa outra vez perguntei pq a moça que ajudava na ceia de natal não estava passando a noite com a família dela. Primeira resposta foi que cada um tem seu lugar. A segunda, depois de um climão, foi que a moça ganharia numa noite o que levaria um mês inteiro para ganhar. Nenhuma resposta me convenceu. E se era tão bom trabalhar uma noite para ganhar o equivalente ao mês todo, por que eles não fazia isso também?

O livro e o podcast me tocaram num lugar que não gosto de reviver. Não escolhi estar do lado de la. Mas não posso apagar que estive e todo mal que foi causado(e ainda é) é responsabilidade minha sim.

Triste. 

Há cada vez menos espaço pro tipo que costumo ser, que em vários aspectos, é o ser que idealizei ser, então cadê contentamento? Soa pedante. Quero escrever um artigo, com Uma história lamentável do Dostoiévski, e daí acho por bem fazê-lo ouvindo Tchaikovsky. Soa brega, coisa de preta colonizada apenas. Entretanto, agora com a guerra na Ucrânia, dou-me conta que a identificação deu-se justamente com a periferia da Europa. Mas não teria sido sem Amanda. Ou teria? Acho que descobri o significante por trás disso tudo: inteligente! Que era a Amanda, e que foi como me senti ao procurar no dicionário aquela palavra que começava com "bo" em Crime e Castigo. 

 Vez em quando, ao longo de tanto anos, ele me dá algo bem valioso: palavras de amor. Emprestadas, mas ditas como se tivessem sido feitas só pra mim, ou pra nós. Teve aquela vez que cheguei em casa e encontrei aquele bilhete que estava escrito "eu sei que eu fui embora e agora eu quero você de volta pra mim". Voltei na hora! Nunca havia ido na verdade. 

Teve o início. Bem, no início foram palavras sem música: o espírito que tudo nega, assim ele me nomeou. Com Goethe. Chique né? Logo depois veio O segundo sol. Nunca poderia eu imaginar interpretação mais romântica de uma música que, no fundo, fala do Hercólubus. 

Tantas outras palavras, roubadas e entregue à mim. Da última vez foram de duas músicas.   

Ponciá Vicêncio

Luandi teve um pai. Um pai de quem, quando criança, escutou coisa bonita, valiosa, coisa que o alimentou, que carregou consigo na andança de quem busca mudar seu destino. O pai de Luandi, filho de ex-escravizados, nem por isso homem livre. Assim como seus pais, permanecera cativo da terra e dos caprichos e exploração dos senhores brancos, até mijo de sinhôzinho foi obrigado a engolir. Cativeiro que se perpetua geração após geração, nossos presídios são vislumbre disto. Certos sobrenomes também: o que Luandi herdou é sobrenome do branco que escravizara seus avós. Na herança de Luandi, está um sobrenome que não o dos seus. Mas está também as belas palavras do pai, palavras que carregou consigo como forma de abordar uma mulher e viver o amor. É que seu pai dizia que as mulheres são como estrelas a iluminar "a noite escura no peito dos homens", bonito, não? E Luandi, na andança de quem busca mudar seu destino, seguindo a trilha aberta por sua irmã, não tardou a encontrar sua estrela, uma mulher que pudesse iluminar a noite escura em seu peito trágico. Luandi é irmão de Ponciá Vicêncio, a protagonista  deste livro que é pura emoção, que transmite tão bem algo de um passado cujas marcas, por vezes de pura dor, assombro e abismo, ainda se fazem sentir naqueles que dele descendem. Há a singularidade de cada um, diferença absoluta que permite ao sujeito separar-se do Outro, e é isto que uma psicanálise em sua intenção persegue, mas há também um passado que nos enlaça e situa num mesmo universo simbólico. E recordar é arma para não repetir. 


 

 Manhã do pior dia da semana, segunda-feira. Foi a primeira desde que o ano iniciou, desde que as férias acabaram, desde que minha mãe foi e...